Karl
Marx .
Hegel observa em uma de suas
obras que todos os fatos e personagens de grande importância na
história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E
esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda
como farsa. Caussidière por Danton, Luís Blanc por Robespierre, a
Montanha de 1845-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo
tio. E a mesma caricatura ocorre nas circunstâncias que acompanham a
segunda edição do Dezoito Brumário! Os homens fazem sua própria
história, mas não a fazem como
querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.
E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar e nessa linguagem emprestada. Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789-1814 vestiu-se alternadamente como a república romana e como o império romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793-1795. De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela.
querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.
E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar e nessa linguagem emprestada. Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789-1814 vestiu-se alternadamente como a república romana e como o império romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793-1795. De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela.
O exame dessas conjurações de
mortos da história do mundo revela de pronto uma diferença
marcante. Camile Desmoulins, Danton, Robespierre, Saint-Just,
Napoleão, os heróis, os partidos e as massas da velha Revolução
Francesa, desempenharam a tarefa de sua época, a tarefa de libertar
e instaurar a moderna sociedade burguesa, em trajes romanos e com
frases romanas. Os primeiros reduziram a pedaços a base feudal e
deceparam as cabeças feudais que sobre ela haviam crescido.
Napoleão, por seu lado, criou na França as condições sem as quais
não seria possível desenvolver a livre concorrência, explorar a
propriedade territorial dividida e utilizar as forcas produtivas
industriais da nação que tinham sido libertadas; além das
fronteiras da França ele varreu por toda parte as instituições
feudais, na medida em que isto era necessário para dar à sociedade
burguesa da França um ambiente adequado e atual no continente
europeu. Uma vez estabelecida a nova formação social, os colossos
antediluvianos desapareceram, e com eles a Roma ressurrecta - os
Brutus, os Gracos, os Publícolas, os tribunos. os senadores e o
próprio César. A sociedade burguesa, com seu sóbrio realismo,
havia gerado seus verdadeiros intérpretes e porta-vozes nos Says,
Cousins, Royer-Coilards, Benjamm Constants e Guizots; seus
verdadeiros chefes militares sentavam-se atrás das mesas de trabalho
e o cérebro de toucinho de Luís XVIII era a sua cabeça política.
Inteiramente absorta na produção de riqueza e na concorrência
pacífica, a sociedade burguesa não mais se apercebia de que
fantasmas dos tempos de Roma haviam velado seu berço. Mas, por menos
heróica que se mostre hoje esta sociedade, foi não obstante
necessário heroísmo, sacrifício, terror, guerra civil e batalhas
de povos para torná-la uma realidade. E nas tradições
classicamente austeras da república romana, seu5 gladiadores
encontraram os ideais e as formas de arte, as ilusões de que
necessitavam para esconderem de si próprios as limitações
burguesas do conteúdo de suas lutas e manterem seu entusiasmo no
alto nível da grande tragédia histórica. Do mesmo modo, em outro
estágio de desenvolvimento, um século antes, Cromwell e o povo
inglês haviam tomado emprestado a linguagem, as paixões e as
ilusões do Velho Testamento para sua revolução burguesa. Uma vez
alcançado o objetivo real, uma vez realizada a transformação
burguesa da sociedade inglesa, Locke suplantou Habacuc.
A ressurreição dos mortos
nessas revoluções tinha, portanto, a finalidade de glorificar as
novas lutas e não a de parodiar as passadas; de engrandecer na
imaginação a tarefa a cumprir, e não de fugir de sua solução na
realidade; de encontrar novamente o espírito da revolução e não
de fazer o seu espectro caminhar outra vez.
De 1848 a 1851 o fantasma da
velha revolução anda em todos os cantos: desde Marrast, o
républicain en gants jaunes(1), que se disfarça no velho Bailly,
até o aventureiro de aspecto vulgar e repulsivo que se oculta sob a
férrea máscara mortuária de Napoleão. Todo um povo que pensava
ter comunicado a si próprio um forte impulso para diante, por meio
da revolução, se encontra de repente trasladado a uma época morta,
e para que não possa haver sombra de dúvida quanto ao retrocesso,
surgem novamente as velhas datas, o velho calendário, os velhos
nomes, os velhos éditos que já se haviam tornado assunto de
erudição de antiquário, e os velhos esbirros da lei que há muito
pareciam defeitos na poeira dos tempos. A nação se sente como
aquele inglês louco de Bedlam vivendo na época dos antigos faraós
e lamentando-se diariamente do trabalho pesado que deve executar como
garimpeiro nas minas de ouro da Etiópia, emparedado na prisão
subterrânea, uma lâmpada de luz mortiça presa à testa, o feitor
dos escravos atrás dele com um longo chicote, e nas saídas a massa
confusa de mercenários bárbaros, que não compreendem nem aos
forçados das minas e nem se entendem entre si, pois não falam uma
língua comum. "E me impuseram tudo isto" - suspira o louco
- "a mim, um cidadão inglês livre, para que produza ouro para
os faraós!" "Para que pague as dívidas da família
Bonaparte" - suspira a nação francesa. O inglês, enquanto
esteve em seu juízo perfeito, não podia livrar-se da idéia fixa de
conseguir ouro. Os franceses, enquanto estiveram empenhados em uma
revolução, não podiam livrar-se da memória de Napoleão, como
provaram as eleições de 10 de dezembro. Diante dos perigos da
revolução, ansiavam por voltar à abundância do Egito; e o 2 de
Dezembro de 1851 foi a resposta. Não só fizeram a caricatura do
velho Napoleão, como geraram o próprio velho Napoleão
caricaturado, tal como deve aparecer necessariamente em meados do
século XIX.
A revolução social do século
XIX não pode tirar sua poesia do passado, e sim do futuro. Não pode
iniciar sua tarefa enquanto não se despojar de toda veneração
supersticiosa do passado. As revoluções anteriores tiveram que
lançar mão de recordações da história antiga para se iludirem
quanto ao próprio conteúdo. A fim de alcançar seu próprio
conteúdo, a revolução do século XIX deve deixar que os mortos
enterrem seus mortos. Antes a frase ia além do conteúdo; agora é o
conteúdo que vai além da frase.
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